
Viver para trabalhar
Atualmente, a maioria das pessoas trabalha muito além da carga horária conveniente, com ou sem contrato formal. É o que confirmam as pesquisas do professor Revalino Antônio de Freitas, do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho (Nest), da Faculdade de Ciências Sociais. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgados em setembro do ano passado, indicam que cerca de 70% dos brasileiros trabalham 40 horas ou mais por semana. Essa quantidade, contudo, pode ser bem maior se somarmos o tempo gasto nos deslocamentos para o trabalho, por exemplo. A sobrecarga anula o tempo dedicado a outras atividades, como o lazer e a convivência com a família.
Assuntos como esses são estudados no Nest, que é coordenado pelo professor Jordão Horta Nunes e conta com a participação de alunos da graduação e da pós-graduação da unidade. Entre as linhas de pesquisa desenvolvidas nos últimos meses, estão a qualificação para o trabalho no setor de serviços, a construção de identidades e a questão do gênero nas profissões, além da pesquisa sobre o tempo de trabalho no Brasil. Nesse último foco, o professor Revalino de Freitas tem reunido dados da Pnad desde 1992, para dar sustentação a futuras pesquisas. “Com essas informações, posso fazer recortes como, por exemplo, estudar o tempo de trabalho em Goiás ou especificidades como o tempo de trabalho do engenheiro ou do médico”, comenta o professor. Mas, segundo ele, já é possível afirmar: “Trabalhamos em excesso e cada vez com maior intensidade. Nossa vida está orientada para e pelo trabalho”.
O pesquisador criou duas categorias para mensurar o tempo de trabalho efetivo: o tempo de trabalho produtivo e o tempo fluido. O primeiro corresponde à quantidade de horas gastas com o serviço em si e o segundo inclui, por exemplo, o despendido no deslocamento até o local de trabalho ou os períodos dedicados à capacitação e/ou estudo. “Essa carga horária não é contabilizada nos dados da Pnad e nem pelas empresas no cálculo do tempo de trabalho, mas deveria, já que essas atividades do tempo fluido ocupam um tempo orientado para o trabalho”, ressaltou. Um professor, por exemplo, depois de deixar a sala de aula e chegar em casa, usa de seu tempo para planejar a aula do dia seguinte, atualizar suas leituras e ainda corrigir provas e tarefas, não raro, além da carga fixada no contrato.
E porque trabalhamos tanto? Nas sociedades industrializadas, o trabalho foi ocupando cada vez mais o espaço da vida social. No Brasil, no período colonial, os portugueses escravizaram indígenas e negros para usufruir do trabalho destes. “Ao longo do tempo, continuamos a distinguir aqueles que trabalham daqueles que usufruem do trabalho alheio. O trabalhador do século XXI, mesmo dotado de todos os direitos, continua na condição de explorado, criada séculos atrás. Os colonizadores estabeleceram discursos que valem até hoje, como ‘o trabalho dignifica o homem’, por exemplo”, explicou o professor.
Outros motivos para o excesso de trabalho não estão restritos ao Brasil. Como fazem parte da conjuntura capitalista de produção, manifestam-se globalmente. O advento de novas tecnologias, por exemplo, ao contrário do que se diz, trouxe formas de se trabalhar mais em menos tempo, mas sem reduzir a jornada. Um jornalista já pode diagramar e revisar o texto que produziu por conta própria, sem que seja necessário o trabalho dos outros dois profissionais, o diagramador e o revisor. Além disso, a alta competitividade aumenta a corrida pela qualificação técnica, o que também contribui para a carga horária estendida, na forma de cursos de capacitação e formações complementares.
Segundo o professor, o mundo do trabalho passa hoje por uma reconfiguração, dando forma a três grandes grupos. O primeiro, cada vez mais restrito, é o chamado “núcleo duro”, composto por trabalhadores altamente qualificados. “Para dar um exemplo, atualmente, no trabalho agrícola, atividades que outrora ocupavam vários trabalhadores, podem ser feitas por um único trabalhador em máquinas com alta tecnologia, como uma colheitadeira”, afirma o professor. Manter-se nesse grupo exige um aperfeiçoamento contínuo. Os que não conseguem passam a compor um grupo muito maior, no qual a competição é ainda mais acirrada. Geralmente, este diz respeito a profissões que não exigem alto nível de qualificação, como empregos de nível médio, por exemplo. O último segmento, chamado de “desfiliados”, é composto pelos que não encontraram lugar no mercado de trabalho e passam a exercer atividades informais para sobreviver.
Trabalho e afeto
Hyrata Hykeno Abe, mestrando que atua no Nest, pesquisa a relação entre o trabalho e os desencontros afetivos e familiares. De acordo com ele, o tempo de trabalho também tornou-se flexível, abrindo caminho para trabalhar em casa e/ou em horários diversos. Por outro lado, além de aumentar o tempo que dedicamos a essa atividade, essa possibilidade também induz ao afastamento das pessoas com que convivemos em casa: a família. “Como o emprego
hoje é algo totalmente pessoal, desligado de sentimentos de classe, cada um tem uma agenda diferente. A família, atualmente, é um grupo de trabalhadores com agendas diferentes. Dessa forma, produzem-se desencontros em todas as classes de trabalhadores.” A mudança geralmente não é percebida, já que somos habituados desde a infância com a busca pelo sucesso no mundo do trabalho. “A criança, com menos de dois anos de idade, já tem de ir para a creche porque os pais precisam trabalhar”, exemplifica Hyrata.
“Não tenho tempo para muita coisa além de estudar. Dedico mais de doze horas por dia aos livros só para ter um emprego decente e uma vida mais tranquila.” A fala é de Leonnam Gomes de Oliveira, estudante do ensino médio que vai prestar vestibular para Medicina na UFG. “Depois de me formar, vou precisar trabalhar tanto quanto, a fim de garantir isso”, afirma. O estudante comentou que um almoço em família, por exemplo, é muito difícil de ocorrer. “Não falo com meus pais durante o dia. Só os vejo no café da manhã e no jantar”, relatou Leonnam.
De acordo com Hyrata Abe, jantares e almoços em família não se tornaram cada vez mais raros apenas como um sinal dos novos tempos, responsáveis pela extinção das tradições. “Se alguém começou a pensar nisso, em destruir as tradições, é porque voltou-se para si mesmo, para os seus problemas. E por que o fez? Porque foi vítima do tempo estendido de trabalho, absorvido pelas demandas que esse tempo criou”, esclareceu o mestrando. “Ninguém, em condições normais, resolve se desvencilhar da família. Somos seres psicologicamente estruturados para viver em família e, no Brasil, essa é uma condição ainda mais forte”, continua. O pós-graduando lembra de casos mais extremos: “Conheci filhos que só se sentem à vontade para abraçar o pai depois de tirar boas notas. Parece que o afeto tornou-se um prêmio para quem o merece”. Hyrata Abe destacou ainda que até mesmo o lazer é orientado pelo trabalho: “descansamos para conseguir trabalhar depois”. Da mesma forma, adiamos decisões como ter filhos ou
começar um relacionamento porque “nosso tempo está absolutamente tomado pelo labor. Nossa diversão serve apenas como fuga de uma realidade que foi completamente tomada pelo ofício”, afirma. “Há casos em que duas pessoas terminam um relacionamento por ‘incompatibilidade de agenda’”, comenta Hyrata.
O fato de continuarmos a trabalhar tanto, mesmo conscientes do volume exagerado de serviço, só pode ser explicado pela necessidade que temos de consumir. Com efeito, a vontade de consumir tem nos feito reféns do trabalho. Sem ele, não poderíamos ir a qualquer lugar e comprar o que desejamos, “mas nem sempre precisamos”, lembra o professor Revalino de Freitas. Propostas para reverter esse quadro incluem a redução da carga horária de forma geral e também a redução do tempo de trabalho no ciclo de vida, isto é, a antecipação da idade mínima para a aposentadoria. “A Previdência tende a ser deficitária. No Brasil, ela só foi superavitária nos seus primeiros 20 anos, quando a expectativa de vida era baixa e havia menos pessoas aposentadas recebendo os recursos, que cresceram muito com a arrecadação de impostos, sobretudo no período da ditadura militar”, explicou o professor.
As conclusões são reforçadas pelo professor: “Precisamos nos aposentar mais cedo. Precisamos trabalhar menos e viver mais. Mais do que isso: é preciso criar uma nova conduta humana, que não se oriente para o consumo, puro e simples”.
Da população de trabalhadores brasileiros
(pouco mais de 92 milhões), em média,*
15,3% trabalham acima de 48h semanais
13,9% trabalham de 45h a 48h por semana
41,1% trabalham entre 40h e 44h semanais
23,5% trabalham entre 15h e 39h semanais
6,07% trabalham até 14h semanais
Percentagem de trabalhadores com jornada semanal
superior a 48h, por segmento profissional: **
Dirigentes em geral: 31,1%
Trabalhadores e prestadores de serviço do comércio: 20,44%
Trabalhadores agrícolas: 14,96%
Técnicos de nível médio: 8,84%
Profissionais de Ciências e das Artes: 5,08%
Em cada segmento profissional, a maioria
dos trabalhadores enquadram-se em
uma faixa de horário semanal:*
Empregadores: acima de 48h
Empregados: 40h a 44h
Trabalhadores domésticos: 15h a 39h
Autônomos: 15h a 39h
Não remunerados: 15h a 39h
Trabalhadores na produção para o próprio consumo: até 14h
*Dados extraídos da pesquisa do professor Revalino Antônio de Freitas,
com base na Pnad 2009, divulgada em 13 de setembro de 2010
**Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), para 2010.
Fonte: Raniê Solarevisky do Jornal UFG