
Jornada sem-fim
Quarta-feira, nove e meia da noite, quando o presidente do Instituto de Pesquisa Econômiica Aplicada (Ipea), Mareio Pochmann, fala a CartaCapital, pelo celular. O vozerio ao fundo, pontuado por avisos de horários de voos, denuncia sua localização. Enquanto aguarda o embarque no aeroporto de Brasilia. O sociólogo comenta os resultados de uma pesquisa realizada na Inglaterra, que lhe chamou a atenção por apontar a redução do tempo de descanso dos trabalhadores no fim de semana, de 48 para 27 horas.
Não é difícil. como se vê, constatar empiricamente o avanço do tempo dedicado à atividade profissional sobre as horas livres da população economicamente ativa. Conforme a natureza do trabalho ou serviço prestado, basta ter em mãos um celular ou um dispositivo com acesso à internet para realizar as tarefas exigidas pelo cargo a partir de praticamente qualquer lugar, e a qualquer momento do dia ou da noite.
O site norte-americano Magnify, especializado no tratamento e arrnazenamento on-line de vídeos, divulgou em abril os resultados de uma pesquisa feita anualmente sobre os hábitos dos inrernautas. Do total de entrevistados, 76,7% responderam que Ieem e-mails e os respondem à noite ou no fim de semana, enquanto 57,4% disseram nunca desligar os telefones celulares. Para 43,2% dos entrevistados, é normal escrever mensagens de texto e e-mails em ocasiões sociais ou encontros amorosos. E outros 35,2% costumam responder a demandas do trabalho quando estão com os filhos. Uma das conclusões dos autores é que "o tempo pessoaI e o período de trabalho se misturaram, tanto que nem o meio da noite ficou de fora dos limites".
Ainda são raros, segundo Pochmann, os estudos científicos a abordar essa nova realidade do mundo do trabalho com maior propriedade. Inspirado pelos ingleses, o especialista conta que o lpea trabalha em uma pesquisa nos mesmos moldes a ser realizada entre trabalhadores brasileiros. Sobretudo, aqueles do setor de serviços, responsável por cerca de 70% da geração de novos empregos no País e justamente a área em que é mais comum o chamado trabalho imaterial, ou intclectual, que pode ser realizado fora do ambiente da empresa.
"A revolução da informação e da comunicação, ao contrário de sua antecessora, a revolução urbano-industrial, não teve as contradições e tensões medidas pela ciência aplicada. Daí a ausência de identificação do aumento da carga de trabalho", analisa o presidente do Ipea. "O funcionário que recebe da empresa um celular, ou um notebook, vê o objeto como um sinal de status, e não percebe que tudo isso é trabalho, gera um valor que muitas vezes é repartido. O Estado não tributa, os sindicatos tampouco se dão conta dessa situação, o que favorece a concentração de riqueza e poder nas mãos das empresas."
A falta de estudos acadêmicos sobre a nova realidade das jornadas de trabalho é uma lacuna que o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) pretende cobrir. Cursos na área de ciências do trabalho serão o destaque da escola de ensino superior que a entidade espera inaugurar ainda neste ano. "O tempo de trabalho será um dos nossos temas prioritários", diz o diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio.
De acordo com o especialista, o estudo da jornada de trabalho surgiu em meados do século XIX, teve grande importância nas décadas de 1930 e 1940, com a linha de produção fordista. Mas perdeu relevância acadêmica no Brasil nos anos de 1980 e 1990, sob a influência do neoliberalismo. "Agora, com a volta do crescimento econômico, o trabalho volta a ter importância", afirma. Lúcio não vê, a priori, as novas tecnologias como inimigas do trabalhador. "Tenho um amigo arquiteto que mora no interior, à beira de uma lagoa, e raramente precisa sair de lá por razões profissionais."
Embora também reconheça que a tecnologia pode representar alguns benefícios para os profissionais liberais, Pochmann se preocupa com os assalariados, que, além de não colher integralmente os frutos do próprio esforço, assumem os ônus da carga horária excessiva, como as doenças ocupacionais. "As novas formas de tensão se manifestam pela desintegração familiar, o estresse, o chamado burnout."
A maioria dos problemas apontados pelo presidente do Ipea não se manifesta imediatamente, mas os sinais de alerta estão evidentes em algumas características da atual geração de trabalhadores. Como as apresentadas pelo analista de softwares Evaristo de Goes Neto, de 27 anos. O jovem profissional é um dos responsáveis pelo bom funcionamento de programas que gerenciam milhões de transações bancárias, cuja paralisação, mesmo que por alguns minutos, pode causar prejuízos em escala igualmente superlativa.
Tamanha responsabilidade exige que Neto esteja sempre disponível ao celular, a ponto de já ter interrompido almoço de sábado com a namorada, ou sair de casa às pressas no domingo à tarde para resolver problemas de trabalho. Como contrapartida, o programador tem os horários mais flexíveis, e procura chegar ao escritório depois do almoço, para sair apenas após as 23 horas. "Como tenho hábitos noturnos e os clientes deixam para apresentar as demandas sempre no fim do dia, tento fazer horários que me permitam fugir dos picos de trânsito", diz.
A falta de regularidade nos horários, somada à ansiedade pela obtenção de bons resultados profissionais, é a principal explicação de Neto para os 25 quilos que acrescentou à balança desde que começou a trabalhar, há oito anos. "Ainda jogo futebol quando posso, mas desisti de tentar frequentar uma academia." Cheio de planos para a carreira, o programador não faz ideia do melhor momento para se casar. "Tenho conhecidos que têm filhos e praticamente precisam marcar hora na agenda para ficar com as crianças. Acho que ainda vou ter uma família, mas preciso me policiar, senão trabalho sete dias por semana."
Frida Marina Fischer, presidente da Comissão Técnica de Organização do Trabalho da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), alerta para os riscos a que estão expostos os profissionais que se sujeitam a jornadas extras não reconhecidas pela empresa. Em tese, desde que seja possível comprovar o nexo causal entre a atividade profissional e a doença, o trabalhador está coberto pelo sistema público de saúde e pode ser indenizado pela organização. "Quem enfarta após muitos anos de má alimentação, falta de atividade física e falta de regualridade nos horários tem mais dificuldade de comprovar essa relação."
Uma pesquisa realizada pela Universidade de Uppsala, na Suécia, mostra que só 24% dos trabalhadores dos 15 maio res países da União Europeia cumpriam jornadas regulares, ou seja, fora de horários noturnos, nos fins de semana ou em regime temporário. "O estudo também mostra que os profissionais autônomos são os que têm as jornadas mais irregulares", assinala Frida Fischer. "O problema é que quem trabalha demais fica fatigado, atrasa as atividades e, por isso, acumula mais tarefas, num círculo vicioso."
O último levantamento da Fundação Europeia para a Melhora das Condições de Vida e Trabalho mostrou que é maior, entre os trabalhadores sujeitos a longas jornadas (acima de 48 horas semanais), a sensação de que o tempo não é suficiente para concluir as tarefas. Mais da metade desses profissionais têm a percepção de que sua saúde é negativamente afeta da pelo trabalho, uma impressão compartilhada por menos de um terço dos que cumprem jornadas menores.
A pesquisa ilustra bem os dois lados da moeda: dois terços dos trabalhadores expostos a longas jornadas têm flexibilidade nos horários de entrada e saída, ante um terço dos que trabalham menos. Entretanto, a falta de tempo para compromissos sociais e familiares é um problema que atinge três vezes mais profissionais que passam mais tempo em atividade do que os demais.
Embora a pesquisa europeia ainda não leve em conta as atividades não remuneradas realizadas fora do expediente, a fundação acrescentou uma questão sobre a "contatabilidade" do funcionário, ou se ja, a possibilidade de ele receber um telefonema por razões profissionais. "Em vez de representar uma proteção contra o contato fora do horário, as longas jornadas são associadas a maiores níveis de "contatabilidade" fora do trabalho", indica o relatório. Cerca de metade dos trabalhadores que cumprem jornadas acima de 40 horas semanais recebem ligações fora do expediente, ante menos de 30% dos que cumprem até 35 horas por semana.
A única saída, segundo Frida Fischer, é estabelecer limites claros e rígidos entre os horários dedicados às atividades profissionais e às sociais. O problema é que essas fronteiras são rompidas sem que o próprio trabalhador se dê conta dos prejuízos. Bianca Rodrigues Madaschi, de 33 anos, gerente do departamento de estatísticas de uma grande empresa de pesquisas, diz ter contado com apoio externo para dar a devida atenção à filha recém-nascida, sete meses atrás. "Minha chefe me proibiu de responder aos e-mails profissionais e meu marido me tomou o (celular) BlackBerry durante a licença-maternidade", conta. "Do contrário, eu teria continuado a monitorar o que acontecia no escritório."
Depois de encarar durante os primeiros anos da vida profissional jornadas diárias de 12 horas, Bianca garante que agora se limita a resolver os assuntos mais urgentes quando não está no escritório. Mas não chega a convencer: ela conta que há pouco tempo teve de deixar o bebê por conta do marido no fim de semana, enquanto resolvia assuntos profissionais. "Antes eu era workaholic, agora procuro maximizar meu tempo. Como na maior parte do tempo das reuniões não se discutem assuntos técnicos, aproveito para responder a alguns e-mails. A relação da sociedade moderna com o tempo é a matéria-prima das pesquisas da psicóloga Maria José Tonelli, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV). ''A aceleração no cotidiano do trabalho com a entrada das novas tecnologias foi maior desde a década de 1990, mas não é um tema novo. Preocupa o homem desde a virada do século XIX, e em especial após a invenção do automóvel. As manchetes dos jornais do início do século passado perguntavam: 'Aonde vai nos levar essa velocidade?'"
Se em séculos o homem não foi capaz de estender seu olhar para além de um raio de 20 quilômetros durante a vida, prossegue a pesquisadora, um efeito óbvio das conquistas da humanidade é a impaciência. "Ficamos irritados se não recebemos de imediato a resposta de um e-mail enviado a alguém do outro lado do mundo. E a nova geração cresce nessa era de mobilidade."
Segundo a acadêmica, a aceleração não é percebida de forma homogênea pelos trabalhadores. "Há pesquisas indicando uma pressão mais forte entre os profissionais de média gerência, oprimidos entre as demandas de cima e os limites dos funcionários hierarquicamente inferiores. Isso dá um sentido de aceleração diferente." Outro aspecto da atual organização do trabalho destacado por Maria Tonelli é a possibilidade de realizar as atividades a qualquer momento, mas não necessariamente em todos os lugares. Essa conclusão faz parte da tese de doutorado Trabalho Móvel: Em trânsito por aeroportos e aviões, apresentada no início deste ano por Heloísa Mônaco, sob sua orientação.
"Há uma interferência do local que permite efetuar apenas tarefas de curta duração, até porque é preciso se movimentar com certa frequência e buscar áreas menos sujeitas a ruídos e movimentação de pessoas", diz Heloísa, após um total de 250 horas de observação do comportamento de profissionais nos terminais aeroportuários e em 36 voos domésticos. Ao longo do estudo, a pesquisadora se habituou a ouvir frases como "minha vida é móvel" ou "estar sem celular é ficar fora do ar".
O depoimento de um dos 25 entrevistados da tese ilustra um dilema vivido por muitos profissionais: "Na empresa, você tem trabalho 24 horas por dia. Então, eu procuro estabelecer limites. Já houve tempos em que eu procurava resolver tudo, mas é um engano. Em uma empresa que trabalha essencialmente com projetos, não existe 'não ter problemas' para solucionar, e as 24 horas do dia são insuficientes".
A pesquisadora diz ter percebido também que os trabalhadores dispostos a exceder a jornada diária não são apenas os executivos, embora estes sejam maioria. "Com as facilidades da tecnologia, profissionais da área de vendas enviam pedidos, gestores de projetos tecnológicos preparam relatórios, mesmo que estejam em um nível gerencial intermediário."
O livro Infoproletários: Degradação real do trabalho virtual traz uma série de artigos que relacionam a nova classe de trabalhadores da era tecnológica à mão de obra fabril do século passado. O professor da USP Ruy Braga, um dos organizadores, cita em especial o caso dos atendentes de call centers, uma das áreas que mais geram
empregos no Brasil. "São empregos de remuneração bastante baixa e com altíssimo nível de pressão e estresse, ocupados prioritariamente pelas parcelas da população mais excluídas do mercado profissional, ou sujeitas ao subemprego, o que inclui muIheres negras, travestis e outras minorias."
Segundo Braga, embora a maioria dos contratados veja poucas chances de ascensão profissional no teleatendimento, a chance de formalização é vista como uma porta de entrada no mercado. Situação diversa da enfrentada pelos profissionais mais qualificados, como programadores e analistas de sistemas. "Nesse caso, o grande problema é a frouxidão dos vínculos trabalhistas, que cria a ilusão de empreendedorismo e os leva a acumular atividades para elevar os ganhos ou se prevenir dos períodos de vacas magras."
Thomaz Wood, professor da FGV e colunista da área de gestão de CartaCapital, faz uma ressalva e cita a contribuição da falta de organização nos escritórios para o acúmulo de tarefas além do expediente. "A tecnologia é só um facilitador para os exageros, mas a baixa eficiência pode obrigar alguém a levar trabalho para casa", afirma. "Numa linha de montagem, o operário é disciplinado pelo ritmo da tecnologia, mas hoje o trabalho impõe pressões que não são acompanhadas pela capacidade do trabalhador de organizar-se e resolver tudo no horário definido."
Crítico contumaz do excesso de reuniões, nas quais são "vendidos" projetos que jamais sairão do papel, Wood afirma que pesquisas comprovaram que esses são problemas tipicamente nacionais. "Esse ritmo frenético, que inclui reuniões sem pauta e gerentes batendo cabeça, faz com que a produtividade do trabalho no Brasil seja
quatro vezes inferior à americana. A desorganização é cativante, mas tem seu preço."
Por isso mesmo, o professor da FGV alerta para a possibilidade de reduzir o ritmo de trabalho apenas por meio da organização das atividades diárias. O que não o impede de defender limites legais aos casos em que os funcionários se veem coagidos a fazer mais do que o possível no tempo regulamentado. "Não sou a favor de uma legislação que amarre as possibilidades de trabalho abertas pelas novas tecnologias, mas é importante que haja salvaguardas para impedir abusos das empresas."
• Dono de si
Jon Messenger, da OIT defende que o trabalhador controle seu próprio tempo.
Pesquisador responsável pelo Programa de Condições de Trabalho e Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, na Suíça, Jon Messenger é especialista no estudo da carga horária e novas formas de organização no ambiente profissional. Em resposta às perguntas enviadas via e-rnail por CartaCapital, Messenger defende que a tecnologia seja usada para dar ao trabalhador mais controle sobre o seu próprio tempo.
CartaCapital: Estamos trabalhando mais do que os nossos pais?
Jon Messenger: A jornada de trabalho média declinou gradualmente no último século. Entretanto, nas décadas recentes, o horário dos regimes de tempo integral se estabilizou em muitos países, enquanto uma crescente proporção de trabalhadores, principalmente mulheres, está trabalhando em tempo parcial (especialmente nos países desenvolvidos). Esta é parte da tendência de diversificação das jornadas, com parte substancial dos empregados trabalhando por períodos que podem ser tanto mais longos quanto mais curtos do que as horas regulamentares de cada país.
CartaCapital: Esse fenômeno ocorre em qualquer lugar ou varia conforme o desenvolvimento da economia e o tipo de ocupação?
Jon Messenger: A "confusão" das fronteiras entre trabalho remunerado e vida pessoal é o que mais afeta certos tipos de trabalhadores, como os de nível gerencial ou altamente qualificados. Esses profissionais tendem a cumprir maiores jornadas tanto nos mercados desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento. No entanto, em muitos países em desenvolvimento, as longas jornadas e os baixos salários andam de mãos dadas, já que trabalhadores com baixo nível educacional têm de encarar muitas horas para ganhar o bastante para si mesmos e suas famílias.
CartaCapital: Como governos e sindicatos deveriam lidar com as atividades intelectuais, que podem ser executadas em qualquer lugar?
Jon Messenger: É muito mais difícil medir a produtividade em serviços do que na manufatura, particularmente quando se trata de trabalho intelectual. É por isso que o esforço de trabalho nessas posições é frequentemente medido por autoavaliações e indicadores de intensidade de trabalho, estresse e pressão. A pior combinação é a elevada carga de trabalho combinada com o baixo nível de autonomia, a chamada "organização de trabalho de alta pressão", que tem sido associada a inúmeras doenças ocupacionais. Daí a importância de manter as cargas de trabalho em níveis razoáveis e oferecer ao trabalhador o máximo de autonomia possível de acordo com o tipo de posição. E os governos e sindicatos deveriam estimular práticas de trabalho que deem aos trabalhadores mais controle e influência sobre quando, onde e como desempenhar suas tarefas, a chamada time sovereignty (soberania sobre o tempo, em livre tradução).
CartaCapital: Em sua opinião, a tecnologia é ou não uma aliada dos trabalhadores?
Jon Messenger: As tecnologias emergentes de comunicação e informação (TCI) são uma via de mão dupla. Num sentido, permitem que o trabalho seja realizado a qualquer hora e local. No outro, essas TCI podem oferecer aos trabalhadores a oportunidade de escolher quando, onde e como vão trabalhar, bem como de poupar tempo e dinheiro gastos no transporte, especialmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Os trabalhadores devem pressionar por práticas que de fato ofereçam mais controle e influência sobre suas próprias atividades, como acordos de tempo flexível, bancos de horas e teleconferências.
Fonte: André Siqueira, da Carta Capital