
Cooperativas de recicláveis perdem com programa da CELG
Fernando Bartholo, Coordenador da Incubadora Social da UFG, analisa o programa Ecodesconto da CELG, que troca material reciclável por desconto na conta de luz, e as consequências para as cooperativas de catadores de material reciclável:
As considerações abaixo representam a minha opinião, como cidadão no exercício de sua liberdade de expressão, e refletem a minha indignação como profissional ligado a educação popular e atuante junto às cooperativas de catadores de materiais recicláveis na região metropolitana de Goiânia.
O programa de “responsabilidade social” que a Celg lançou, no início do mês de setembro deste ano, demonstra completa falta de sensibilidade da empresa e do governo de Goiás com as necessidades da população em estado de
vulnerabilidade social, justamente no momento em que todo o Brasil leva adiante as propostas de um “Brasil sem miséria” e da Economia Solidária a propor soluções para a sobrevivência de populações marginalizadas e excluídas do sistema produtivo por diversas razões, pelas quais são vitimadas.
O “programa social” da Celg (Ecodesconto) funciona conforme os seguintes passos:
1. O cidadão, ou empresas, separa o material reciclável e entrega nas cooperativas de catadores de materiais recicláveis ou “postos de troca das prefeituras”.
2. O cidadão, ou empresas, recebe, no ato da entrega, um comprovante com o valor dos materiais.
3. As cooperativas, ou “postos de troca das prefeituras”, remetem outra via do comprovante de entrega para a Celg.
4. As cooperativas, ou “postos de troca das prefeituras”, vendem o material.
5. As cooperativas, ou “postos de troca das prefeituras”, REPASSAM o valor da venda para a Celg.
6. A Celg acrescenta mais 10% sobre o valor recebido e desconta na conta de luz do cidadão, ou empresas.
Observa-se que ao receber o dinheiro da venda das cooperativas, ou dos “postos de troca das prefeituras”, a Celg, na verdade, drena recursos que seriam aplicados na geração de trabalho e renda para os catadores de materiais recicláveis.
Acrescenta-se ao fato, o desserviço prestado ao trabalho de instituições na educação sócio-ambiental junto à sociedade para que faça DOAÇÃO desses materiais às cooperativas de catadores (vide Decreto 5.940/06 e 11.09.2003). Ao trocar o material pelo “desconto”, o cidadão, ou empresas, deixa de pensar na sua participação social e responsabilidade ambiental para se interessar, individualmente, pelo seu “ganho” financeiro na sua conta de luz e perde as referências de um verdadeiro programa de coleta seletiva.
Um programa de coleta seletiva não se refere apenas a um programa ambiental. É muito mais que isso. Trata-se de buscar soluções para problemas sociais de largo alcance imbricados nas questões políticas, econômicas e ambientais, pois tem como eixo o combate a violência, ao alcoolismo, às drogas, ao analfabetismo, ao trabalho infantil e à exploração da miséria. Além, de levar em conta os cuidado com a saúde pública, com a conscientização da sociedade sobre a questão dos resíduos, com o resgate de cidadania, direitos sociais e dignidade do trabalhador. Enfim, trata-se de um programa de ação integral a envolver todas as áreas da administração pública municipal.
São com essas preocupações que as instituições, e as políticas públicas do governo federal, desenvolvem projetos e a aplicam recursos significativos na educação formal, formação e capacitação dos catadores, na infra-estrutura de
suas cooperativas e na logística de coleta, além da conscientização da sociedade por meio de ações de educação sócio-ambiental. São instituições como o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Goiás (SRT-GO), a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), a Fundação Banco do Brasil, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, o BNDS, as Universidades (UFG e PUC-GO), por meio de seus programas de incubação de empreendimentos solidários, o MNCR-GO (Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis em Goiás), as prefeituras (exemplo da Prefeitura de Goiânia, por meio do Programa Goiânia Coleta Seletiva – PGCS) e o Ministério Público de Goiás (MP-GO) em seu projeto Ser Natureza, entre outras.
Ao invés de utilizar a sua vantagem de estar presente em todas as regiões e promover, ou participar, de parcerias institucionais para a solução desses problemas, a Celg desconsidera todas essas ações e traz a possibilidade de conseqüências funestas aos programas de coleta seletiva, principalmente quanto à geração de trabalho e renda aos catadores de materiais recicláveis no estado de Goiás.
Permite-se pensar na possibilidade de “sucateiros” tornarem-se “agentes” da Celg em detrimento da organização dos catadores como classe trabalhadora autônoma e independente. Portanto, considerando o histórico da empresa a lhe
inferir vultosa “dívida”, tida como insolúvel, permite-se pensar na promiscuidade de relações entre “agentes” privados e setor público. Permite-se pensar em fins duvidosos, sejam políticos ou individuais. Isso, sem considerar as questões sobre a contabilização e controle desses recursos. Além disso, abre-se a perspectiva de outras formas de programas similares, como exemplo, pela Saneago, pela CMTC, no IPTU, no ICMS, etc. Não importa dizer que as cooperativas ganham um percentual desse recurso a título de “prestação de serviço”. Qualquer quantia que lhe saia das mãos para programas dessa natureza representa diminuição de recursos a gerar renda para os trabalhadores e possibilitar investimento no seu próprio empreendimento.
Tem-se que os grandes beneficiários desse programa “social” são: a própria Celg, pois passa a garantir receita antecipada sem custo, e a classe de maior poder aquisitivo, já que produz maior quantidade de material reciclável, o que representa maior valor a ser descontado. Enquanto isso, são cobradas das cooperativas de catadores, pelo fornecimento de energia elétrica, as mesmas tarifas cobradas a uma grande empresa e, não raro, multas por atraso e corte por falta de pagamento.
Perdem as prefeituras, que enfrentam seriamente a questão de sua população excluída e tratamento de resíduos, e as instituições que investem em programas de conscientização e educação sócio-ambiental da população e nos projetos para organização e desenvolvimento dos catadores de materiais recicláveis. Perde a própria sociedade ao ser incentivada a pensar e agir de forma individualista. É claro, perdem muito mais os próprios trabalhadores (catadores de materiais recicláveis) e seus empreendimentos. Estes, perdem tanto sob aspectos financeiros, quanto pelo reconhecimento da importância de seu trabalho perante a sociedade.
Fonte: Fernando Bartholo, Coordenador da Incubadora Social da UFG